Vou morrer, doutor?

Amélia Oliveira é advogada, tem 50 anos e dois filhos, gémeos, com 17 anos. É uma mulher muito ativa, decidida, que parece viver a vida intensamente, dividindo-se entre a profissão, a política e a atividade associativa, tendo, por exemplo, integrado a direção da Cercimarante, e sido presidente da Casa do F. C. do Porto – Dragões de Amarante. É presidente da Assembleia Geral da Terra dos Homens. Sempre foi uma mulher saudável e a dificuldade que teve em engravidar resolveu-a com fertilização in vitro, de que nasceriam Tiago e Francisco.

Em março de 2009, Amélia Oliveira apercebeu-se de que tinha um nódulo numa mama. Falou com o seu ginecologista que a mandou fazer uma mamografia e uma ecografia mamária. Durante este exame, o médico perguntou-lhe se sentia alguma diferença no seio. Disse-lhe que sim. Não obstante, a conclusão do clínico, após o exame, foi: “a senhora tem umas mamas fantásticas”! 

Nas semanas e meses seguintes, continuou a sentir o nódulo, o que a levava a pensar que, de facto, teria alguma coisa na mama. Isto, embora não tivesse quaisquer sintomas de que poderia estar doente. A única coisa que sentia, era muitas contraturas musculares nas costas que, de resto, chegou a atribuir ao stress, já que o ano de 2009 foi muito agitado, com eleições autárquicas e legislativas em que esteve muito envolvida.

Regressada de férias, foi a uma clínica de Amarante, marcou uma consulta de clínica geral e, casualmente, foi vista por uma médica sua amiga. Ela fez-lhe palpação e disse que lhe parecia sentir algo na mama. Mas, não sendo especialista na área, sugeriu-lhe que fosse vista pelo marido, um conhecido cirurgião de Amarante. 

Ausente da cidade, o médico viu-a nesse mesmo dia, quando regressou a casa, e notou a existência de um espessamento, de algo do tamanho de uma amora, tendo-lhe aconselhado um clínico no Porto para a examinar, o que aconteceu no início de setembro. Amélia Oliveira fez-se acompanhar da ecografia que havia feito em março e mostrou-a ao dito clínico que, segundo ela, lhe perguntou: “quem foi o burro que assinou este relatório?” As mamas fantásticas que o texto referia, afinal estavam doentes, tendo o seu interlocutor lamentado que Amélia Oliveira tivesse feito os primeiros exames no que ele chamou “uma fábrica de salsichas”.

Em vez de um nódulo, Amélia Oliveira tinha já dois e um gânglio infetado. Perante a expressão do médico, que indiciava um caso com alguma gravidade, perguntou-lhe: “doutor, vou morrer?” Ele olhou-a e disse-lhe: “vamos ter calma”. “É que não me convinha mesmo nada, tenho dois filhos pequenos…”, sussurrou. E pensou, para si, que se isso acontecesse seria mesmo uma tragédia. Ainda se fosse antes de eles terem nascido, ou quando fossem adultos, mas com apenas nove anos, lamentou.

Amélia fez uma “bateria” de exames e, quando saiu da clinica, de encontro ao marido, que a esperava no exterior, disse-lhe sem rodeios: “acho que tenho cancro da mama”. O resultado da biópsia só seria conhecido daí a dias, mas, em função dos exames que fez e da expressão do médico, não lhe ficaram dúvidas. 

Diz ter-se sentido como se o seu “corpo tivesse achatado, encolhido”, viu-se “diminuída, pequenina, dobrada ao nível das pedras calçada. Era uma sensação estranha, mas era essa a forma como me via, por contraponto a situações de felicidade, quando parece que crescemos, ficamos mais altos”.

Quando, dias depois, conheceu o resultado da biópsia, Amélia Oliveira percebeu que o milagre de que um amigo lhe havia falado não se confirmava. Logo, não tinha necessidade de repetir o exame. O seu primeiro pensamento foi dirigir-se ao IPO (Instituto Português de Oncologia), que já conhecia por ter sido dadora de medula óssea. O médico que a recebeu perguntou-lhe, depois de ter observado os exames, se Amélia sabia o que tinha. Respondeu-lhe que sim e quis conhecer o que se seguiria, sendo que, no seu caso, se achou que o melhor seria fazer uma mastectomia (remoção completa da mama), por causa do caráter invasor do cancro.

Estava-se em setembro de 2009 e, seguindo-se os protocolos em vigor no IPO, se Amélia Oliveira ali continuasse seria operada apenas três meses depois, o que, para si, dada a sua estrutura mental, reconhece, seria muito difícil de aguentar. “Três meses seria uma eternidade, eu não iria conseguir ter aquele monstro dentro de mim durante tanto tempo. Sou assim: perante uma dificuldade, um problema, tenho que os resolver no curto prazo, preciso ir em frente, nem que isso signifique ir de encontro a uma parede”. Depois, havia aquilo a que na gíria oncológica se chama “largada de balões” e que não é mais do que a fase em que o tumor se espalha pelo corpo, atingindo órgãos vitais, como os pulmões e outros. Amélia achava que não conseguiria viver mais três meses com essa possibilidade na cabeça.

Em menos de duas semanas, foi operada numa clínica privada, sem que tivesse contado aos filhos o seu estado de saúde. Não foi difícil esconder-lhes as suas idas ao IPO ou a sua ausência para a intervenção cirúrgica, que justificou facilmente por, naquela altura, estar envolvida, na campanha eleitoral para as eleições autárquicas e para as legislativas, nas quais era candidata a deputada. Quando, após uma semana de internamento, regressou, Tiago e Francisco “caíram-lhe” na cama, como sempre faziam, e a pergunta inevitável surgiu: “mãe, onde estiveste”?

Amélia falou-lhes com algum pormenor da situação, disse-lhes que tinha tirado uma mama, que iria, agora, fazer alguns tratamentos e que lhe cairia o cabelo. “Mas, disse-lhes, isto não é convosco, quero que vocês continuem a fazer a vossa vida, a estudar, a brincar e a serem felizes. Esta é uma situação que acontece a muitas mulheres. Poder-me-ia ter acontecido outra coisa qualquer, um acidente, por exemplo. A mãe vai-se tratar e há de ficar bem”. Tiago e Francisco olharam-se e este quis ver: “Queres mesmo?, perguntei-lhe. “Acenou com a cabeça, desapertei o soutien, ele olhou-me a mama, tirei do outro lado e, perante a cicatriz, o Francisco susteve a respiração e perguntou-me: doeu-te, mãe?”

Amélia começou os tratamentos de quimioterapia quinze dias depois da operação, com sessões que demoravam quatro horas. Logo à segunda sessão, o cabelo começou-lhe a cair e, em face disso, decidiu pô-lo mais curto. A queda acentuou-se e não hesitou: pediu à cabeleireira que lho rapasse. Isto, apesar de, durante algum tempo, a possibilidade de “ficar careca” a atormentasse. Decisão tomada, naquele dia a cabeleireira mandou-a virar de lado, pediu-lhe que não olhasse o espelho e rapou-lhe o cabelo. 

Amélia tinha-se prevenido antecipadamente com uma peruca, mas nunca a chegou a usar. “Em vez da peruca, usei gorros. Tive sorte porque, naquele ano, usavam-se os gorros e comprei imensos. Alguns bem giros… É curioso: muitas das pessoas que me conheciam, vendo-me assim, ficavam inibidas quando se me dirigiam, sem saber o que me dizer. Então, eu perguntava: quer ver a minha careca? E tirava o gorro”, diz, rindo-se.

Durante o período em que fez tratamentos (mais de seis meses), Amélia nunca deixou de exercer e sempre dispensou apoio psicológico, não obstante este lhe ter sido oferecido várias vezes. Diz que sentiu sempre muito carinho à sua volta, fosse de familiares, colegas de profissão e até de adversários políticos e que isso lhe bastou. Tendo acabado os tratamentos em meados de 2010, viria a fazer reconstrução mamária no ano seguinte, através de abdominoplastia, uma intervenção que designa de muito complexa e que exige um período de convalescença superior a um mês.

Com uma estrutura mental forte, Amélia Oliveira parece olhar o cancro que a afetou como mais um episódio na sua vida, que “aconteceu e pronto. Acho que desliguei o interrutor e, hoje, quase não me lembro que perdi uma mama, que substituí por outra, reconstruída”. E também não sente que, atualmente, valorize mais a vida do que anteriormente. “Acho que a vida deve ser vivida o mais intensamente possível até ao último dia, mas já o sentia antes”, refere. Ao longo dos tratamentos, sempre otimista, a única preocupação de Amélia era com os filhos, então com 10 anos, que não queria deixar. De tal forma que “obrigou” uma prima a jurar-lhe que se o cancro não fosse debelado, ela cuidaria do Tiago e de Francisco.

Amélia diz, também, nunca ter tido quaisquer problemas com a sua feminilidade, uma questão que afeta muitas mulheres, que tendem a aceitar mal as mudanças estéticas (e sequelas) associadas ao cancro da mama. “Um médico amigo preveniu-me de que as taxas de divórcio são altas em situações de mastectomia, mas nunca receei isso, diz. O meu marido esteve sempre muito presente e foi extremamente importante em todo o processo”. Amélia e o marido, de resto, parecem estar em permanente estado de paixão. Basta espreitar a página dela no Facebook, onde existem inúmeras declarações de amor.

Vencida a batalha do cancro e sem qualquer recidiva nos cinco anos críticos após a intervenção, Amélia Oliveira continua a fazer medicação, com um comprimido diário, e vigilância, com duas consultas por ano no IPO e exames anuais (mamografia e ecografia mamária). E se, antes, quando em tratamento, encarava as deslocações ao Instituto Português de Oncologia com alguma naturalidade e sem dramatismos, agora é diferente: “são uma tortura”!

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