Amarante no Caminho de Santiago

Da Inventio à Catedral de Santiago de Compostela


Por volta de 815, um eremita, de seu nome Paio, encontra num bosque um mausoléu e comunica a sua descoberta ao bispo de Iria Flávia (actual Padrão), Teodomiro, que ao vê-lo atribui o túmulo ao Apóstolo Tiago. Perante tal achado, o rei das Astúrias, Afonso II, acorre ao local para poder venerar as santas relíquias, tornando-se assim no seu primeiro peregrino.  

A partir de então, muitos outros, entre eles, o próprio Carlos Magno, rei dos francos, seguiram os passos de Afonso II, alargando gradualmente as áreas de proveniência, nomeadamente da Península Ibérica, da Europa Central, da Grã-Bretanha e da Península Itálica. Esta rápida expansão e constante fluxo de peregrinos ao “Campo das Estrelas”, como então se passou a designar o local da descoberta, deveu-se também, ao entusiasmo e ao empenho do próprio papa, Leão III, que acolhendo a notícia, incentiva todos os cristãos a realizarem uma peregrinação para venerarem os despojos do Apóstolo da Hispânia e assim redimirem os seus pecados.   

 O entusiasmo gerado em torno da descoberta do túmulo de S. Tiago; o gosto natural do Homem Medieval em venerar relíquias de santos; e a própria Reconquista Cristã da Península Ibérica aos povos Islâmicos, constituem três dos factores que mais contribuíram para a difusão do culto jacobeu. O próprio S. Tiago viria a tornar-se no padroeiro dos exércitos cristãos peninsulares, passando a ser invocado antes das batalhas, como grito de guerra[1].

Pouco tempo depois da descoberta do túmulo, Afonso II, ordena a construção de uma igreja e funda, na sua envolvente, um mosteiro beneditino, o Mosteiro de S. Paio de Ante-altares, determinando que esta comunidade religiosa se encarregasse da conservação das relíquias e manutenção do culto. Ao bispo de Iria Flávia cede os seus direitos sobre as terras e os homens, num raio de 60 km a contar da igreja de S. Tiago, estabelecendo assim as bases para a instituição da Diocese de Santiago de Compostela. 

Catedral de Santiago de Compostela

Ainda não tinha passado um século desde a Inventio[2] do túmulo de S. Tiago e já se levantava uma nova Igreja, ou melhor, uma basílica que haveria se ser completamente arrasada por Almansor em 997, contudo, o túmulo do apóstolo foi poupado.

Em 1075, inicia-se a construção de uma nova basílica que seria elevada à categoria de catedral em 1100, tendo o seu 1º bispo continuando as obras de engrandecimento e embelezamento, não só da catedral, como da própria cidade de Compostela que cada vez mais fortalecia o estatuto de importante centro de peregrinação, logo a seguir a Jerusalém e a Roma, convertendo-se num importante centro cultural da Europa Cristã.  

   Obras essas que vão continuar nas épocas posteriores, resultando na actual catedral, na qual se podem admirar inúmeros estilos artísticos e arquitectónicos, merecendo destaque o Portal da Glória, da autoria do mestre Mateo, iniciado em 1168; e os acrescentos barrocos construídos entre 1738 e 1750. 


Amarante no contexto geopolítico Peninsular Medieval

Aquando da descoberta do túmulo do Apostolo S. Tiago, o Reino das Astúrias era um território algo difuso que entre avanços e recuos, abrangia pouco mais do que a linha do Rio Douro. Somente com a tomada definitiva de Coimbra, em 1064, e da Linha do Mondego, a região vive alguma estabilidade. 

Do Séc. VIII ao Séc. XII, Amarante é um hiato, não se conhecendo qualquer indicio que permita o vislumbre de um núcleo urbano. No entanto, e herdeiro do período romano existia um eixo viário de relevante interesse regional que se tornaria crucial para o seu surgimento e desenvolvimento posterior. 

As primeiras referências à urbe, surgem num testamento de 1113 que referem a existência de uma igreja dedicada a Santa Maria, anos mais tarde, voltam a aparecer novos elementos, desta vez alusivos a uma albergaria com igreja anexa. Neste documento, datado de 1192, sabe-se que a referida albergaria pertencera a Gonçalo Mendes de Sousa. 

 Consta ainda, segundo as inquirições de 1258, que esta importante família aristocrata dos primórdios da nacionalidade, terá incrementado o povoamento de Amarante e efectuado diversas doações à Ordem dos Cavaleiros do Hospital que assim vêem reforçada a sua influência na região. 

Constata-se também que Amarante, entre os Sécs. XII e XIV, vai ganhando cada vez mais notoriedade no contexto regional, estando ao mesmo nível de desenvolvimento que outras localidades de média dimensão do Entre-Lima-e-Douro.

Em larga medida, o rápido desenvolvimento da urbe amarantina deve-se em primeiro lugar à sua posição estratégica, no cruzamento das vias para o Porto, Braga, Lamego, Chaves e Bragança, em muito beneficiada com o restauro ou a reedificação da ponte de Amarante que a tradição atribui a Gonçalo de Amarante.

Este posicionamento estratégico terá sido um factor atractivo para que ao longo destas centúrias, se tenham fixado artífices e comerciantes provenientes de outras localidades da região e aqui desenvolveram as suas actividades.  

Do mesmo modo, este local, mais concretamente nas imediações da Ponte de Amarante, se instalam as Ordens mendicantes, os Dominicanos a partir de 1240/50 e o ramo feminino dos Frades Menores em data anterior a 1333.

A Vocação Viária e Hospitaleira de Amarante

No decurso da Baixa Idade Média, Amarante vai adquirindo notoriedade, devido ao seu posicionamento estratégico, na intercepção de importantes eixos viários, junto à sua ponte que tudo indica ser de fundação romana, embora profundamente restaurada por volta de 1240. 

Segundo a tradição, terá sido um frade mendicante a empreender a obra por sua própria iniciativa que, em conjunto com o seu carisma e vocação pregadora, granjeia a devoção  e o carinho popular, tendo falecido em aura de santidade por volta de 1259. 

São Gonçalo de Amarante, como viria a ficar conhecido, embora natural de Vizela, não é caso único a alcançar os altares da Igreja Católica, enquanto santo pontífice[3].

Para além do restauro da ponte e da própria devoção a São Gonçalo, em Amarante são fundadas 2 albergarias, uma na margem direita, em plenas funções no ano de 1192 e outra, na margem esquerda do Rio Tâmega, fundada em meados do séc. XII.

A albergaria da margem direita, designada de Albergaria de Amarante, terá partido da iniciativa dos Sousões, ou terá passado para a administração desta família, no Séc. XII, uma vez que em 1192, os filhos de Gonçalo Mendes de Sousa agraciam D. Toda Soares com a doação da albergaria como reconhecimento por esta nobre senhora ter doado, anos antes, para seu serviço um casal[4] e um mouro. Sabe-se ainda que esta albergaria era detentora de uma igreja. 

Partido desta informação e à luz dos parcos dados arqueológicos que se dispõe, a Albergaria de Amarante juntamente com a sua igreja, corresponderá à ruina da Capela de Santo Estêvão que em 1565, é doada à Misericórdia de Amarante. Ao lado desta, existiu até ao ano de 1903, uma casa conhecida por Casa da Albergaria na qual, aquando das demolições realizadas para a construção dos armazéns de apoio à Estação dos Caminhos-de-Ferro de Amarante, foram detectados vários enterramentos. 

Por sua vez, a albergaria da margem esquerda, designada de Albergaria do Covelo do Tâmega, terá segundo a tradição, partido da iniciativa de D. Mafalda de Sabóia, esposa de D. Afonso Henriques. 

Esta albergaria poderá ter tido ao seu serviço uma comunidade de beguinas, também conhecidas por madalenas, instaladas na Igreja de Santa Maria Madalena do Covelo, sufragânea do Mosteiro de Lufrei. Em 1614, ano em que transita da administração da Câmara de Gouveia de Riba-Tâmega para a da Misericórdia de Amarante, a velha albergaria já não cumpria com dignidade os seus desígnios, recebendo anualmente 20 000 reis e possuía apenas: duas cobertas velhas, uma manta rota, quatro panos velhos e três leitos muito velhos. 

O Património Cultural no Caminho de Santiago

Ao longo dos Caminhos de Santiago múltiplos são os elementos patrimoniais de enorme valor para a Cultura Europeia que aliás mereceu a atenção do Conselho da Europa, o qual o designou, em 1987, como o Primeiro Itinerário Cultural Europeu.

 Na Cidade de Amarante, o primeiro elemento a referir é a devoção e a Lenda de S. Gonçalo.

S. Gonçalo é um dos santos evocados pelos peregrinos do Caminho de Santiago

Falecido em aura de santidade, a memória do venerando Gonçalo de Amarante vai-se difundindo pelos Caminhos de Santiago e encontram-se alguns exemplos materiais da sua devoção em igrejas e capelas, onde o santo amarantino surge no mesmo retábulo que o Apostolo S. Tiago ou em retábulos diferentes mas no mesmo lugar de culto. O mesmo sucede a algumas das suas lendas que apresentam uma raiz semelhante, serve de exemplo a Lenda de D. Loba, que na tradição Gonçalina empresta a São Gonçalo uns bois bravos para a construção da ponte e que amansam perante o santo; enquanto que na tradição jacobeia, D. Loba empresta aos discípulos de S. Tiago dois bois bravos para transportar o esquife com os restos mortais do apóstolo, perante estes, os bois ficam dóceis. 

Ainda neste âmbito, é conveniente referir que S. Gonçalo é um dos santos invocados pelos peregrinos. 

O segundo elemento e intimamente relacionado com São Gonçalo é a Ponte de Amarante que possibilita a transposição do Rio Tâmega ou a passagem das terras transmontanas para as minhotas. Da primitiva ponte, substituída pela actual, inaugurada em 1790, ainda subsistem os alicerces e o cruzeiro biface, popularmente designado de Nossa Senhora da Ponte, com a representação da Virgem Maria com Jesus Cristo Morto nos braços (Nossa Senhora da Piedade) de um lado, e de Cristo Crucificado do outro, cuja tipologia é frequente na Galiza, ao longo dos itinerários para Santiago. 

Um terceiro elemento é a Capela de S. Tiago na Igreja de São Gonçalo, a qual pertencera aos Coelhos Cerqueira, cavaleiros da Ordem de Santiago. Esta capela foi acordada, em 1564, entre os Dominicanos e Francisco Cerqueira, pelo seguinte: os frades de São Gonçalo ordenavam a demolição da Capela de S. Tiago, existente na antiga ermida de São Gonçalo ou nas suas imediações, e os Cerqueiras receberiam em troca, uma das capelas da nova Igreja. Com este acordo, os Dominicanos poderiam continuar as obras de construção da Igreja conventual e os Cerqueiras preservariam o seu patrono e o respectivo mausoléu familiar naquela que vira a ser a igreja mais importante de Amarante.

Em quarto lugar, os elementos artísticos e arquitectónicos da Igreja de S. Pedro, mais concretamente, a vieira que se pode ver na fachada principal. Embora os concheados, neste caso concreto, as vieiras, sejam um elemento decorativo frequente na arquitectura e na arte barroca, a sua colocação pode ter tido a intenção de assinalar a memória dos peregrinos de Santiago. No interior desta igreja, pode ser visto na sacristia, um conjunto de telas representando os 12 Apóstolos de Jesus Cristo e entre estas uma com a representação de S. Tiago. É também proveniente desta igreja o interessante conjunto escultórico representando São José, Nossa Senhora e o Menino Jesus, a Caminho do Egipto, ou o seu regresso a Israel, figuras que surgem vestidas com indumentária jacobeia (esclavina, bordão) e que também surgem com alguma frequência nos Caminhos de Santiago, tomando as designações de Nossa Senhora Peregrina, Nossa Senhora do Desterro ou Fuga da Sagrada Família para o Egipto.   

Por último, ainda persiste na toponímia amarantina, uma rua com a designação da Ordem, actual Carlos Amarante. Atendendo à designação, seria nesta rua que a Ordem dos Cavaleiros Hospitalários de São João, de Jerusalém de Rodes e de Malta, vulgo Ordem de Malta, concentrariam parte substancial dos seus bens na Cidade de Amarante.  

Esta Ordem Militar, estabelecida em Amarante em data incerta, vai adquirindo bens ao longo dos Sécs. XII e XIII, fruto de doações várias que a tornam numa das entidades administrativas da então Villa de Amarante, cujo poder municipal, foi ao longo da Idade Média, repartido entre o Juiz de fora dos Homens Bons de Amarante (cavaleiros) e pelo Juiz dos Cavaleiros da Ordem do Hospital. 

Esta Ordem Militar tinha por objectivos acolher e prestar assistência aos peregrinos e aos mais desfavorecidos e de defender os Lugares Sagrados do Cristianismo. Em Portugal, os hospitalários estabelecem-se sobretudo, junto a itinerários de peregrinação, a lugares de peregrinação ou em locais susceptíveis de ataques ou assaltos Islâmicos. 

Se ao longo da Idade Média, o Caminho de Santiago se converte num polo agregador e difusor de Cultura, Arte e Património, capaz de agregar os povos europeus, a Época Moderna traz consigo várias situações que vão gradualmente atenuar as peregrinações, culminando, na Época Contemporânea, como um resquício de uma Memória. 

 Situação que terá sido causada pelas tentativas de assalto à costa galega e à Catedral de Santiago perpetradas pelos corsários ingleses, entre eles Francis Drake, fazendo com que o arcebispo esconda os restos mortais do apostolo e alguns dos tesouros da catedral que acabam por se perder após a sua morte, voltando a reaparecer apenas em 1879, no âmbito de escavações arqueológicas realizadas na catedral.

Os múltiplos conflitos entre os Reinos Ibéricos e os novos padrões mentais e culturais da sociedade moderna acabariam por dissuadir os poucos peregrinos que se atreviam a encetar a peregrinação, situação que só se reverterá, a partir de meados do Séc. XX.  

Em Amarante, não se verificou um refrear das peregrinações, assistiu-se sim a uma mudança de peregrinos. A partir da Época Moderna, já não passam peregrinos de Santiago, mas sim chegam, cada vez mais e em maior número, peregrinos de São Gonçalo que em muito contribuíram para uma certa Cultura Hospitaleira de Amarante e das suas gentes.


Bibliografia:

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COSTA, Jorge da; Acerca da Inserção Urbana do Convento de São Gonçalo de Amarante, in Monumentos nº 3; Lisboa; IPPAR; Setembro de 1995.

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[1] – O designado S. Tiago Mata-Mouros. Esta invocação tem origem no episódio lendário de que na véspera da batalha de Clavijo, em 844, o rei das Astúrias, Ramiro II, teve uma visão de que S. Tiago montando num cavalo conduzia os exércitos cristãos à vitória contra os infiéis.

[2] – Que significa descoberta.

[3] – Por ser construtor de pontes. Segundo a ideologia medieval, a manutenção de uma via ou de uma ponte era uma obra de enorme piedade e de consideração para com o próximo.

[4] – Diga-se pequena propriedade rústica.

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