Instinto

Decerto o homem – com ou sem maiúscula – não é nada, e isto a que chamamos, ufanamente, consciência não passa de fantasmagoria, de uma sucessão de imagens que a mente recria, numa ilusão de impossível conceptualização, mas para a qual encontramos sempre palavras. Imagens e palavras, eis o que temos. E orgulhamo-nos disso. E chamamos-lhe conhecimento.

Declaro-me céptica quanto ao poder do bípede arrogante chamado homem.

Poder! Que poder? Temos tanto poder como uma formiga ou um elefante! Qualquer gota de água nos faz transbordar, qualquer vendaval, estremecer. Não quero ter qualquer relação com esse tipo de poder, não ambiciono qualquer estatuto de excepção face aos outros seres da natureza.

A consciência? Mas qual é a vantagem de termos, enquanto homens, consciência? Acaso não chegaria o instinto? Esse, que governa leões e formigas dando-lhes tudo o que necessitam – ainda que não saibam que necessitam! E que bom seria não saber!

A necessidade apunhala quotidianamente a nossa ânsia de tranquilidade. A ambição projecta-nos constantemente para as lutas mais ferozes que as daqueles a que chamamos selvagens!

A maioria dos homens vive na irracionalidade tanto mais perversa quanto é confundida com razão. Tanto mais obscura quanto é designada de consciente. Que sabemos nós? E como podemos dizer que sabemos?

A necessidade obrigou-nos, desde sempre, a agir, levou-nos, pelos caminhos da selva, até ao asfalto da civilização. Acabámos esquecendo a selva, onde o instinto nos tinha sussurrado a primeira questão e, julgando responder-lhe, destruímos esse primeiro habitáculo. E a pergunta original, nunca respondida, confundiu-se, perverteu-se, produziu falsas respostas, engendrou questões marginais e deu-lhes soluções, a tal ponto que o que sabemos hoje é muito, o que sabemos hoje é avassalador mas, a todos os títulos, perfeitamente inútil.

É claro que poucos me conseguiriam dar razão. Eu própria não dou razão a mim mesma, porque não posso: como todos, vivo, vigilante, nesta selva pervertida e vou aprendendo alguma da sobrevivência hábil de todos. Alguma! Apenas alguma! E  dou a esse saber-fazer uma importância mínima e, constantemente, transformo em ruído e isolo de mim o saber-fazer a que os outros me obrigam. Em tudo o resto deixo que o instinto pontifique.

Não me lembro de ter aprendido a escrever, ou a falar ou a andar e, por isso, creio firmemente que qualquer uma dessas habilidades é apenas instinto – e este “apenas” não pretende ser redutor, ainda que o pareça. Não penso quando escrevo, não penso quando falo, não penso quando ando…e é tudo o que posso dizer. Ensinaram-me  a fazer isto e aquilo? Dizem que sim, é claro, todos nós dizemos que nos ensinaram e achamos que ensinamos outros. Só que, de facto, ensinar seja o que for a quem quer que seja não é possível. O que sobra, então, desta saga prodigiosa em que uns dizem que ensinam e os outros dizem que aprendem? Apenas e sempre o instinto, esse, que lidera os mais importantes dos nossos gestos, esse, que nos leva para a frente, apesar da consciência, apesar da razão.

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